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Pé de Serra, de Antônio Vital Neto

Pé de Serra



Antônio Vital Neto, Upiara Oriba ou só Oriba. Rapper, fotógrafo, escritor e artista visual do povo indígena Pankararu.

Naquela velha aldeia havia um casalzinho super simpatico, que morava em uma velha choupana no pé da Serra Grande, próximo à ladeira. Coisa que sempre me despertou curiosidade de saber como que era viver daquele jeito, tão longe de tudo e ao mesmo tempo, tão perto da natureza, de tamanha amplidão. De tanto pensar, acabou que a curiosidade tornou-se uma inquietude. Até que resolvi passar lá, aproveitando os momentos em que saia para caminhar nos fins de tarde, sempre que possível.


Era uma casinha simples, muito bem cuidada. Repleta de plantas, bastante acolhedor. Havia uma porteira que dava para o terreno que os dois cuidavam com tanta ternura. Verifiquei se não haveria cães ou algo que me oferecesse perigo, havia apenas um filhotinho de um vira-lata parecido com um dalmata, super manso e brincalhão.


Adentrei a propriedade, rumo a entrada daquela humilde residência. Que me fez recordar, ainda que sem querer, momentos incríveis que passei quando ainda era um pivetinho, antes de me mudar para a cidade grande. A cada passo que eu dava, mais e mais eu me sentia imerso numa outra realidade, onde meu eu adulto sequer existia. O cheiro do café recém-passado, aquele ar puro trazido pela brisa do vento, o frescor da água que enchia os vasilhames me confortava num afago que nem eu mesmo saberia explicar. Eu que estava de tênis, senti como se estivesse caminhando descalço na areia molhada em frente aquele casebre.


- Boa noite, posso me chegar aqui? – Indaguei.


- Ô meu filhinho, se aprochegue. Puxe um tamborete! – recebeu-me o senhorzinho, que acabara de sair de seu tão refrescante banho.


Havia um rádio que tocava algumas canções, maioria delas eram baião. A voz de Luiz Gonzaga me prendia aquela varanda. De repente, sua esposa sai de dentro de casa, com um pano de prato em seus ombros.


- Oi, tudo bom? – Saudou-me.


- Oi, boa noite. Estou só de passagem, vi que vocês estão sempre por aqui este horário, resolvi visitá-los.


- Pois fique à vontade, daqui a pouco eu trago o café.


- Oh, sim. Por favor! – disse eu ainda ofegante.


Era por volta das dez para às seis, quando o sol terminava de se pôr, dando lugar a boca da noite. E dali daquele alto eu via as luzes se acenderem, de pouco a pouco, iluminando todo o entorno da aldeia. Era um dia de lua clara, era possível ver quem passava pelo caminho, o qual me trouxe até ali. Muitos voltavam de suas caminhadas, outros de suas peladas nos poeirões, e outros de seus trabalhos, os quais eram o sustento de suas famílias.


Sem sair do lugar, por ali mesmo, abancado, eu me perdia em meus próprios pensamentos. Um misto de epifania e nostalgia me tomavam por inteiro, eu nem sentia mais meu corpo, apenas do suor escorrendo na minha testa.


Estava eu de cabeça baixa, quando o senhorzinho, que se chamava José, me chama atenção:


- Você tá bem meu filho? – perguntou preocupado devido meu estado.


- Oi? – Respondi, ainda desnorteado.


Ainda me recobrando, respondo que sim acenando positivamente com a cabeça. Ele me oferece uma xícara com um café cheiroso acompanhado de uma porção de bolachas coquinho. Senta-se em minha frente e começa a fazer algumas perguntas, dentre elas, se eu já tinha passado por ali antes, se já morei nas redondezas, se tenho parentes próximos, se estou estudando, se estou casado ou tenho filhos. A partir dali começamos a trocar algumas ideias e percebi que ainda não tinha vivido o suficiente.


Praticamente, um choque.


Acompanhado de sua esposa, ambos me contaram sobre suas vivências, onde nasceram, cresceram, como se conheceram, andaram, trabalharam, o que enfrentaram para permanecerem juntos e os motivos que os levaram a viver naquele pé de serra, ainda que seus filhos morem nas regiões centrais.


Eu não conseguia parar de olhá-los nos olhos, ao perceber o quanto à experiência de ambos fazia eu me sentir envolvido numa sensação de que a experiência de viver algo intensamente, como muitos jovens como eu achava - extrair de cada experiência uma lição valiosa.


Toda a fisionomia daquele casal me fazia chorar por dentro de emoção. As rugas e marcas de expressão em seus rostos, acompanhados de um sorriso singelo, me aqueceram por dentro, coisa que há muito tempo eu não sentia. Como eu gostaria que eles fossem meus avós. Foi ali onde aprendi a dar valor a muita coisa que por mim sempre passou despercebida.


Porém, de tudo o que conversamos até quase às dez horas da noite, teve uma coisa que desde então não desgrudou da mente, e a qual eu levo como um norte em minha vida: “Tem que andar muito ainda meu filho”. disse, segurando minha mão direita.


Aquilo me explodiu a mente. Onde eu só conseguia acenar com a cabeça, não conseguia achar um contra argumento. Foi quase dei-lhes um forte abraço, pois com uma frase, dentre tantas outras ditas ali, eles me preencheram um espaço, que há tempos eu queria selar em meu peito.


Nunca fui muito de me despedir, mas doeu profundamente em mim, não saber quando voltaria a vê-los, mas fechei aquela porteira, com a certeza de que um dia voltaria e passaria um tempo maior e com mais calma. Pois, foi ali, naquele pé de serra, onde encontrei, a minha razão de viver.

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1 Comment


Unknown member
Oct 13, 2021

Incrível entrar nesse universo, desperta uma mistura de sentimentos.

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