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Natal tem cheiro de casa, de Regina Borges




Como a festa de aniversário de Jesus cairia no sábado, o prefeito antecipou a feira livre para a sexta e isso atrapalhou completamente meus planos, e a aflição de que meu pai não viesse me pegar desmantelou toda a minha costumeira alegria.


Ainda assim me apressei. Juntei todos meus pertences na mala de couro marrom herdada da minha bisa e nela afundei também meus livros e cadernos e lápis coloridos que se ocupariam só quando eu cansasse de todas as brincadeiras com meus irmãos. As férias tinham cheiro de rio. Com muito cuidado enrolei entre as roupas os presentes que tinha conseguido acumular durante todo aquele semestre.


Lembrei-me da carta que escrevi a Papai Noel e a escondi entre as telhas da cozinha. “Será se ele a encontraria?”, “Será se ele realizaria o meu desejo?” Uma parte de mim dizia que não, a outra era animada. Também sempre ficava pensando como era difícil o bom velhinho entrar nas casas de chaminé, ainda bem que por aqui não fazia frio assim ele entrava pela janela mesmo.


O badalo da fábrica soou nos avisando que já era meio-dia e nada de meu pai. De tão triste que estava meu coração, eu nem sequer saí para me despedir das amigas que de uma a uma foram todas correndo abraçar as suas mães. E eu estava incondicionalmente só naquele mundo.


A Tia Estela veio me chamar novamente para almoçar, lhe contei como era doída a dor de ter sido esquecida, abandonada e a abracei e chorei até a última gota de lágrima. Só depois desci do quarto para jantar porque saco vazio não fica de pé como já dizia minha sábia mãe, quando eu ficava horas e horas na estrada esperando o meu pai chegar da feira com uma sacola cheia de pães doces com muito coco caramelizado.


Como era dia de sexta-feira, certamente meu pai desceu de barco diretamente para o centro de abastecimento agrícola e de lá mesmo retornado pelo rio, porque era assim que ele sempre fazia. Assim o meu destino era mesmo me conformar em passar o

natal ali, rezando com os santos. Adeus decorações, adeus brincadeiras, adeus presentes. As lágrimas voltaram e dormimos juntinhas.


No meu diário de leitura eu escrevi um conto de natal. Uma linda história de uma mulher que vivia muito triste porque seu único filhinho morrera afogado e depois ela não conseguia ficar mais grávida ainda que tivesse feito muitas e muitas promessas. Até que um dia ela viu uma estrela cadente e pediu novamente um filho, seu desejo foi atendido e toda família comemorou feliz. E tão grande foi a surpresa quando lá no hospital, na noite de natal, o médico lhe entregou dois bebês e ela os chamou de Rômulo e Remo. Na verdade, eu dei esses nomes porque a minha professora contou a história deles e eu achei muita bonita, espero que ela não ache ruim batizá-los igualmente aos fundadores de Roma.


Estava eu feliz sonhando com Rômulo e Remo mamando na sua mãe quando ouvi aquela voz. Era meu pai! Troquei de roupa às pressas, desci a escada voando, dei-lhe um sorriso e abracei suas longas pernas. Papai tinha cheiro de alegria. Ele pegou a minha mala, despedi-me das freiras no portão e desejei-lhes um feliz natal.


Fomos caminhando pela rua principal em direção à igreja Nossa Senhora das Graças, atravessamos a pracinha onde brincávamos uma hora toda noite, ao longe Azulão me viu e se mostrou todo satisfeito. Corri para abraçá-lo, contar-lhe de minhas saudades, em retribuição seu relincho me deixou quase surda, ainda acordou o padre e metade da cidade, tenho certeza.


A cangalha não é um lugar muito aconchegado, mas você logo se acostuma, basta acompanhar o ritmo. O caminho que nos levaria até a fazenda era longo, por isso sempre aproveitava bem a viagem dizendo o nome das árvores, dos passarinhos, dos riachos... quase mais nenhum eu errava, meu pai ia montado em Barão, mostrava um sorriso tímido, diferente da minha mãe.


Na porteira minha mãe nos esperava. Minha irmã mais velha também. Aquele lugar tinha cheiro de felicidade. Fui abraçada pelas duas. Já sentada na longa mesa verde tomando café com bolinhos de farinha contei as novidades da escola, minha mãe mostrou alegria em me ver terminando já a 4ª série.


Com os outros irmãos fomos decorar a nossa festa natalina. Com a permissão de mãe tiramos todas as buchas vegetal, amarramos num sisal e enrolamos no mandacaru

que ficava próximo ao terreiro, estava pronta a nossa árvore de natal. O sino da cabrita Branca ficou uma beleza na guirlanda de croá e o presépio foi o mesmo de pedras feito no ano passado.


Saímos na carreira para atender ao chamado de nossa irmã para experimentar as roupas da festa, todas couberam direitinho nos corpos dos novos donos, eu ganhei um verde limão de lastex no busto, nunca tinha ganhado um vestido tão belo. Só as calças dos meninos que tiveram de fazer abainhados.


E quando o sol já se preparava para dormir, voltávamos felizes do rio já tomados banhos. A nossa mãe ainda cativa ao seu fogão de lenha preparava nossa ceia e ao seu pedido colocamos a toalha na mesa, também os pratos e copos de vidro usados somente em noite especial, e uma única vela ao centro.


Meu pai foi acendendo os lampiões e a luz que se espalhava por toda sala iluminava nossas faces. Ao canto, no presépio, coloquei devagarinho o pequenino e frágil menino Jesus na manjedoura. Sentados à mesa vi meu pai José e minha mãe Maria, Ana e Joaquim estavam do outro lado da mesa, Miguel e Samuel ocupavam a ponta direita, João e Pedro estavam do meu lado.


Juntos demos às mãos e ouvimos nosso pai agradecer a Deus pelo ano bom de chuva e pelo rio cheio de peixe. Servimo-nos de galinha, arroz, farofa, tomate e batata-doce e comemos ouvindo canções natalinas saídas do rádio, acompanhávamos sorridentes.


Sob à luz das estrelas nos jogamos nas esteiras que decoravam o terreiro, e novamente, mas com assombro de primeira vez, ouvimos a história do nascimento de Jesus. Corri para pegar os presentes. Ao meu pai dei o sabonete lux que ganhei no meu aniversário da Tia Estela, a Ana dei um lindo papel de carta, aos meus irmãos um bocado de balas e chicletes, a minha mãe quatro saquinhos de tempero. Todos ficaram muito felizes e me abraçaram muito.


No colo de minha mãe logo adormeci e Papai Noel me trouxe a felicidade e juntos fomos voar no trenó naquela noite toda estrelada cantando “Hoje a noite é bela” e como sua ajudante especial fui deixando em cada janela um saquinho cheio de magia de Natal.




Regina Borges

Novembro, sábado, 6.

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