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Mulher de Bronze, de Regina Borges


Mulher de bronze




Saí mais cedo que de costume para dar uma caminhada pela praia, a angústia de mais uma noite mal dormida me deixara irritada, deparei com alguns rostos desconhecidos, pelas feições alguns pareciam se lembrar de mim, segui em conversa agitada com os pensamentos e sentindo o cheiro das flores que anunciavam a nova estação.


Há um sentir de coisa nova, não nova de existir, nova de existir em mim. Sinto inveja da calmaria das ondas, deve ser a lua minguante de setembro, em mim se aprofunda o declínio da ilusão com a estranha humanidade que preferiria não morar em mim.


Ontem certa hora, já sem nenhuma disposição de arrumar confusão com a minha nostalgia noturna, parei para ouvir uma reportagem de um telejornal, as imagens me levaram para dentro das mazelas da ignorância desse país. Uma mulher dorme inerte em meio ao lixo, estaria ela morta? De que teria morrido - dor de fome ou de esquecimento?


Piso nas pedras portuguesas, as mulheres cor de areia me lembram do glamour da zona sul e que a vida aqui é cara, e todos vivem fantasiados de seus personagens de carnaval. Tirar a máscara mostra a fragilidade de viver, quanto custa para não sentir a dor de existir?


Ela é preta. De onde terá vindo? De mais perto percebi um semblante altivo, agarrada a um livro de refúgio, sua aparência bonita e elegante contrasta com a imundície ao seu redor: garrafas de bebidas de tipos diversos, papelões, sacolas plásticas. Aos seus pés, um cão a vigia da solidão de seus dias.


Ao fundo, meus olhos acompanham a orla de Copacabana, o morro Dois Irmãos, a Pedra da Gávea, cartões-postais do mundo. Do meu lado, pessoas seguem em seus passos apressados, indiferentes à mulher esquecida.


Retorno para casa não sei se com mais indignação ou tristeza, ando devagar entre milhares, futilidades cotidianas, me reconheço só. De longe me despeço da mulher de bronze, que de costas, não pode mais admirar o mar. Engulo cheiros de primavera e recomeço.


(Um fragmento de memória à memória da inesquecível Clarice Lispector, que teve a sua estátua vandalizada no Leme, Rio de Janeiro)



Regina Borges

29/09/2020

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